A barata é um inseto cosmopolita, encontrada em qualquer sujeira, em qualquer parte do mundo. Se contenta com os restos e não se preocupa com a origem deles. É um inseto resistente, mas marginal. Como todo inseto, é irracional. Carrega em seu corpo, a despeito de sua vontade, um bando de comensais: vírus, bactérias, fungos e vermes. Comensais para a barata, parasitas para os humanos. As baratas se multiplicam fervorosamente: parecem contrariar a natureza seletiva proposta por Darwin e Wallace.
A barata despertou a atenção de um dos maiores autores de todos os tempos: Franz Kafka. Kafka usou a barata como inspiração de seu livro Metamorfose, que conta o incrível caso de Gregor Samsa.
Gregor Samsa é um caixeiro-viajante. Viaja para pagar a dívida de seu pai com seu atual patrão. Não quer esse emprego, mas acredita na missão de salvar sua família, mesmo que por algo que não supôs, nem questionou. Certa manhã, ao acordar, percebe que se transformara em um asqueroso artrópodo: uma barata. Diante do infortúnio, não pode sair da cama, embora lhe ocorra que deva trabalhar. Nesse impasse, até o chefe vem questionar sua ausência. Em vão. Seu corpo não lhe permite que saia, seu novo corpo não deve ser visto por ninguém.
Diante de sua impossibilidade de sair do quarto e do imperativo de sua família para que vá trabalhar, sua nova aparência é revelada.
Entre asco e impaciência, a família incompreende Gregor. Apenas sua irmã procura alguma interação, na esperança de que volte a ser como era antes. A família procura nova fonte de renda porque Gregor não trabalha mais. Hóspedes são acolhidos e se espantam com a criatura-hexápoda. Com o passar dos meses, é esquecido até por sua última linha de humanidade, representada por sua irmã querida.
Apartado dos convívios, em seu quarto esquecido, Gregor não come e assusta a todos, a cada encontro. Sem sua função de amortizar a dívida, Gregor não é ninguém. Sem ser engrenagem, definha. Até que um dia é encontrado magro e morto. Graças à Deus.
O que Kafka quis com essa quase-fábula? Quis falar de baratas? Quis meramente aterrorizar seus leitores?
Não sejamos tolos: não há trivialidades em Kafka. Para além disso, ele usa seu conto de terror com os ingredientes de quem pensa e reflete socialmente. Ainda escrevendo no início do século 20, Kafka apresenta o mundo burguês, o mundo capitalista, em sua literatura fantástica, recorrendo ao nojo. Usa do espaço literário para entornar o caldo de sua crítica.
A genialidade nos livros. Leiamos os livros!