Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus.
A fome foi a sua vida, ela não viveu, ela sobreviveu.
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (JESUS, p.29).
Foto de um dos diários de Carolina Maria de Jesus.
Escrevendo, Carolina não só relatou o estado degradante em que vivia e as atrocidades que sofria, mas fez do seu relato de vida uma obra prima, misturando crítica política e social com poesia, através disso, fez um importante registro histórico, eternizando o sofrimento de todos os favelados e de um povo renegado e maltratado. Carolina demonstrava, em muitos aspectos, ser uma pessoa culta e amante do conhecimento, o livro conta com citações inusitadas e um considerável repertório sociocultural, para alguém semianalfabeta e tendo estudado somente até o 2º ano do fundamental.
Outro ponto importante acerca de sua pessoa foi que Maria não se deixou corromper pelas maldades e instintos de sobrevivência animalescos das pessoas ao seu redor. Ameaçada constantemente de morte, sua rotina na favela era composta por brigas deploráveis, pessoas tacando esterco em seus filhos, suicídio, assédio, pornografia, roubos e furtos, que “eram?” comuns no ambiente da favela retratado.
Não obstante, em meio a tanto ódio, ela ainda tinha amor pela vida e pela natureza.
“…Dizem os velhos que no fim do mundo a vida ia ficar insipida. Creio que é história, porque a natureza ainda continua nos dando de tudo. Temos as estrelas que brilham. Temos o sol que nos aquece. As chuvas que cai do alto para nos dar o pão de cada dia” (JESUS, p.144) .
Sua força física, psicológica e emocional, é inspiração, é lição.
Enfim, fica o questionamento, como podemos julgar os atos daquelas pessoas, se elas não vivem, mas sobrevivem, são animais selvagens tentando sobreviver. Como exigir racionalidade, controle próprio de alguém que mal possui glicose no sangue, é desumano, a fome é desumana. Por isso, o dia-dia na favela, segundo Carolina era permeado pela discórdia, raiva, incestuosidade, perversão e nojeira.
Um pouco de contextualização, um pouco de crítica:
O diário se passa no período de 1955 a 1960, época em que o pós-guerra ainda tinha forte influencia na economia brasileira. O governo era de Juscelino Kubitschek, vindo de partido com correntes getulistas, o foco só podia ser na industrialização e modernização, desencadeado a partir do “plano de metas”. De qualquer forma, os “Anos de ouro” foram pra quem? JK foi foco de ironização por Maria:
“Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pega-la? É igual o governo do Juscelino” (JESUS, P.134) .
“Eu não gosto do Kubstchek. O homem que tem um nome esquisito que o povo sabe falar, mas não sabe escrever” (JESUS, p.70).
Essa história de ascenção do país, a partir da industrialização é clichê quando se trata dos mais pobres, pois a economia é sempre priorizada. Entretanto, os desprovidos de recursos são deixados de lado, por mais que sejam a base do ciclo geral da economia. Prova desse descaso, que não é citado no livro, é a desocupação da favela Canindé, na qual Maria morava:
Após uma enchente muitos moradores tiveram seus barracos e pertences destruídos e foram obrigados a se mudar. A Divisão de Serviço Social do Município junto ao Movimento Universitário de Desfavelamento, promoveu a execução de um plano para a remoção total da favela, contudo, a prefeitura não deu nenhum apoio ao programa além do financiamento e dos poucos técnicos disponibilizados, 4 assistentes sociais, 2 advogados e 3 engenheiros (SILVA, 2009).
http://www.favelasaopaulomedellin.fau.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/SATO_IniciacaoCientifica.pdf
Em conclusão, se isso parece suficiente para resolução do problema, se coloque no lugar dessas famílias, elas eram removidas para áreas periféricas, muito distantes de onde moravam e até mesmo para outros municípios. No fim das contas, o tratamento era feito de forma assistencialista, sem nenhum acompanhamento constante, ajudavam só naquele momento emergencial, ao invés de combater as causas que permeavam seu estado de pobreza. Sendo que, muitas vezes, essa transferência resultavam no surgimento de novas favelas.
Nesse viés, surge outra reflexão com base no livro “Quarto de Despejo”, quem é melhor para opinar sobre a sociedade e a política se não quem sofre toda a negligência e descaso do governo, quem está na primeira estratificação da pirâmide social e que é pisado pelos maiores. Carolina mostra tudo isso, expondo, por exemplo, a inflação, lutando diariamente com o preço dos produtos alimentícios mais básicos:
“…Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.” (JESUS, p.60).
“…Os atacadistas de são Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!…” (JESUS, p.146).
“Politico quando candidato Promete que dá aumento E o povo vê que de fato Aumenta o seu sofrimento!” (JESUS, p.135)
Por esse e outros vários motivos, conclui-se a tamanha importância e necessidade de ler este livro, para sair da caixinha, da bolha, para expandir o campo opinativo, para conhecer outras realidades, realidades que nunca deixarão de existir. Deveria ser obrigatório ouvir os marginalizados, ouvir a classe trabalhadora e predominante. Deveria ser obrigatório pensar mais nos outros, se importar mais com os outros, ter mais empatia.