Pablo Neruda escreveu: “a fome é um incêndio frio.”
Estamos em 1939 mas na verdade o tempo é mais remoto: 1861. A história se passa em algum lugar da região sul dos Estados Unidos em plena recém-deflagrada Guerra da Secessão, a guerra civil americana. De um lado, o Sul aristrocrata, latifundiário e partidário imperativo da escravidão. Do outro, o norte industrializado, os intitulados ianques. Um ambiente devastador implantou-se sobre o território dos Estados Unidos levando a quase 1 milhão de mortes durante o conflito (1861-1865). Em uma fazenda do sul escravocrata, Scarlett O’Hara, mimada, apaixonada e apaixonante, inicia uma saga das mais belas da história do cinema. Gone with the wind (E o vento levou). Sessão imperdível (apesar de durar mais de 4 horas…) que deveria estar presente em qualquer lista dessas de “os filmes que devo assistir antes de morrer”.
Os motivos? Um elenco marcante com Vivian Leigh (1913-1967), Clark Gable (1901-1960) e Hattie McDaniel (1895-1952). Muitas indicações para o Oscar (recebeu naturalmente o de melhor filme, sendo o primeiro filme colorido premiado na categoria). Cenas inesquecíveis – como a do incêndio que torrou cenários igualmente importantes como o do primeiro King Kong (1933). De todas as cenas do filme, a mais tocante para mim é Scarlett retornando a Tara, a fazenda de seu pai. Lá, incendiada e destruída pelos ianques, com a mãe morta e o pai louco, Scarlett não tem o que comer. Com o entardecer ao fundo, segurando o vestido rodado, cabelo em desalinho, ela diz que nunca mais passará fome enquanto viver, segurando nervosamente em uma das mãos um tubérculo, na desolada e arrasada terra outrora próspera.
Fome.
No centro da cabeça, há um lugar. Ele se chama hipotálamo. Entre outras funções, é o centro da fome. No sangue, um mensageiro: a leptina. A regra é clara: quando você come acima do que precisa, nossa matriz energética estoca gordura nos adipócitos (nossas células dedicadas a “engordar”). Os adipócitos avisam que estão bem abastecidos liberando a leptina. A leptina atua no hipotálamo cessando o apetite.
Difícil, é o contrário. Estômago vazio, sangue sem açúcar, o corpo reage liberando (a partir do estômago) o hormônio da fome: a grelina. A grelina avisa o hipotálamo: estamos com fome!
Fome.
É um desafio mundial. O exercício de reduzir a fome estava em marcha lenta mas progressiva, mas veio a pandemia. Além dos fatores conhecidos como a seca, o frio, as desigualdades sociais e regionais, as guerras, a má distribuição dos alimentos, tem-se a mais o empobrecimento da população por conta da Covid-19.
Os números atuais assustam. Há uma estimativa de que 23 mil pessoas morreram de fome apenas hoje. O total de pessoas desnutridas no mundo supera 850 milhões. No entanto, há 1,7 bilhão de pessoas em sobrepeso. Seria lindo que a cena de Scarlett fosse um grito definitivo para cada cidadão dos já quase 7,9 bilhões de seres humanos na atualidade. Enfrentar o incêndio quente de Tara, e esse incêndio frio que revela Neruda…
Fome.