Em uma análise nem um pouco apolítica, o sociólogo e especialista em educação, Rudá Pelini faz uma raio-x do cenário político que aguarda o nosso Poder Legislativo nos próximos meses. e gestão participativa.
Arthur Lira deixa a presidência da Câmara dos Deputados em meio a um legado que mistura o fortalecimento do centrão, avanços sobre os outros poderes e acusações de relações promíscuas entre política e interesses familiares.
A trajetória de Lira, em muitos aspectos, reflete o aprofundamento de uma dinâmica iniciada por Severino Cavalcanti e Eduardo Cunha, figuras que transformaram o papel da Câmara no jogo político brasileiro.
De Severino a Eduardo Cunha: A Gênese da Subversão
A chegada de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara foi um susto para o establishment político. Contudo, foi Eduardo Cunha quem de fato redesenhou a relação entre a Câmara dos Deputados e o governo federal, inaugurando um período de chantagens abertas e embates com o Poder Executivo. Cunha manipulou o baixo clero e consolidou o que se tornaria um modus operandi para seus sucessores.
Arthur Lira é herdeiro dessa dinâmica. Durante sua gestão, avançou sobre o governo Bolsonaro, chantageou o governo Lula e enfrentou o Supremo Tribunal Federal (STF). A utilização do poder legislativo como ferramenta de barganha e o controle sobre emendas parlamentares marcaram sua presidência.
Os Bastidores do Poder: Lira e o Complexo Ruralista
Menos visível para o público é a relação de Lira com o agronegócio e o coronelismo. Desde os 16 anos, ele esteve envolvido na pecuária, seguindo o legado familiar de ocupação de terras e controle político regional. Segundo o relatório “Arthur, o Fazendeiro”, de Luis Indriunas e Alceu Luís Castilho (Brasil de Fato, 2023), Lira e sua família possuem 115 fazendas, que somam 20.039 hectares. Muitas dessas propriedades estão envolvidas em disputas de terras e violações de direitos humanos, como a invasão de terras indígenas Kariri-Xocó em Alagoas.
Ainda de acordo com o dossiê, o clã Lira utiliza prefeituras e consórcios intermunicipais para retroalimentar seus negócios. Verbas federais são desviadas para cavalgadas e vaquejadas, consolidando o poder político e financeiro da família.
A Codevasf e o “Tratoraço”
Outro ponto-chave do poder de Lira foi sua conexão com a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A estatal foi o principal veículo do “tratoraço”, o esquema de distribuição de equipamentos superfaturados financiado pelo “orçamento secreto”. Um total de R$ 3 bilhões foi utilizado para beneficiar aliados do governo Bolsonaro.
Enquanto o primo de Lira, Joãozinho Pereira, comandava a Codevasf, o presidente da Câmara fortalecia suas ações junto ao Consórcio Intermunicipal do Agreste Alagoano (Conagreste). Essa rede de interesses ampliou sua influência na região, consolidando seu poder.
Investigações e Denúncias
Não faltam acusações contra Arthur Lira e seus aliados. Em abril de 2022, uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou um esquema envolvendo kits de robótica superfaturados adquiridos por prefeituras de Alagoas. Os kits, financiados com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) via emendas de relator controladas por Lira, eram vendidos por uma empresa ligada a aliados do deputado.
As irregularidades também chegaram ao cerne do funcionamento familiar. Luciano Cavalcante, considerado “faz-tudo” da família Lira, foi apontado como operador em diversas transações polêmicas. Uma delas envolveu o uso de recursos do MEC para pagar despesas pessoais do então presidente da Câmara.
Eduardo Cunha como Modelo
Lira também manteve um padrão de fidelidade a Eduardo Cunha, mesmo durante o processo de cassação do ex-presidente da Câmara. Ele emitiu pareceres favoráveis a Cunha e replicou seu modelo de liderança baseado em pressão e barganha.
Em 2023, Lira foi reconduzido à presidência com 464 votos de 509 parlamentares. O apoio de Lula foi emblemático, destacando a capacidade de articulação do líder do centrão. No entanto, sua gestão também ficou marcada pelo apoio a projetos polêmicos, como a PEC do voto impresso e a tentativa de ampliar o poder do Congresso sobre o Conselho Nacional do Ministério Público.
O Embate Final com Flávio Dino
Nos últimos 30 dias de sua presidência, Lira enfrentou um confronto direto com o ministro da Justiça, Flávio Dino, que iniciou ações contra a falta de transparência no uso das emendas parlamentares. O embate foi considerado por muitos como uma batalha de vida ou morte para o político alagoano.
Um Legado Conturbado
Arthur Lira sai da presidência da Câmara deixando para trás um legado de poder construído sobre bases fragís e controversas. Seu modelo de liderança, inspirado em Eduardo Cunha, subverteu a relação entre os três poderes e consolidou o papel do centrão como uma força política autônoma. Contudo, o preço dessa hegemonia é alto, com Lira agora enfrentando investigações e um futuro incerto. Seu caso é um exemplo do impacto corrosivo de relações promíscuas entre política, família e interesses econômicos no Brasil.