Desde o início de junho, um estimado de 1 milhão de pessoas vem tomado as ruas de Hong Kong em resposta à uma lei transitando no congresso, que permitiria a extradição judicial de suspeitos para o território chinês, uma ação vista como parte da crescente onda de influência na autonomia da região pelo governo chinês de Xi Jinping.
A região, que foi devolvida pela Inglaterra sob um acordo que garantia sua integridade para exercer a democracia, liberdade de expressão e sistemas políticos semi-independentes do resto da China por 50 anos, é um retrato anacrônico das diferenças do sistema democrático e o regime do Partido Comunista chinês. A população altamente engajada, que vive num dos principais centros tecnológicos e econômicos do mundo, demonstra a diferença e usa os recursos disponíveis para lutar contra o território continental que não parece esperar os 50 anos para incorporar de vez Hong Kong.
Tomando as ruas há meses e, em determinado ponto dos protestos, a própria câmara legislativa, os manifestantes tem a tecnologia, tão avançada em sua realidade, como aliada e inimiga. Se por um lado há uma organização intensa em vários grupos de aplicativos de mensagem como WhatsApp, Telegram e Signal repassando informes acerca das necessidades da manifestação, assim como dicas de segurança e posicionamento e reações da força policial, há também uma reação intensa do Estado, que infiltra policiais à paisana nos atos com o objetivo de criar desordem e realizar operações sem identificação, abordando suspeitos com base em dados pessoais, além de prenderem manifestantes mediante violação de seus direitos básicos. Uma recomendação passada por vários grupos tem sido de desativar o FaceId ou TouchId (recursos que permitem desbloquear o celular usando identificação de rosto ou a digital) de seus dispositivos, pois policiais, quando apreendem suspeitos, estão tomando seus celulares e usando estes recursos para obter informações, ilegalmente.
Uma das formas mais preocupantes de perseguir manifestantes tem sido o reconhecimento facial por meio de câmeras de segurança. Para combater isso, muitos começaram a usar lasers, que mesmo em frequência baixa, tem a capacidade de desabilitar, temporariamente, os sensores de câmeras, interferir com a visão dos policiais, impedir com que tirem fotos que identifiquem as pessoas e ainda servem para apontar onde a polícia está concentrada. Viver sob um governo que já tem a capacidade de invadir todas as informações pessoais por meio de hacks, que não se preocupa em seguir a conduta básica de identificação de seus agentes e que tem um sistema sofisticado o suficiente para poder identificar e deter pessoas sem que elas ao menos tenham cometido crimes, somente participado de atividades online, é perturbador. Isso faz com que as formas de resistência evoluam, e da mesma forma que a tecnologia pode ser usada da forma autoritária que a China emprega, e que aparentemente Hong Kong também começa a por em prática, ela também pode ser utilizada como ferramenta de reunião, compartilhamento e reação da população para lutar contra as opressões que sofre e exercer seu direito num estado – até então – democrático.
Se isso parece um enredo distópico fictício, é porque a realidade já evoluiu suficiente para alcançar nossos piores pesadelos.