Quando tantas pessoas, famosas ou não, começam a contar inúmeros relatos de experiências similares e identificar padrões que se repetem em cascata e que ajudam outros, que ainda sequer haviam percebido que estavam numa situação perigosa, qual o nome que se usa? Sendo um evento social em grande escala não se pode mais presumir que é apenas uma fabricação sem crédito. Então é algo maior do que apenas uma onda de Internet, e que supera a Internet na maneira como afeta a vida em sociedade. Isso é um sintoma.
Sintoma do quê, especificamente? Seria de um projeto de idealizar o amor romântico, como algo necessário para se ter na vida sem o qual esta não será completa, que acontece desde a infância, tornar isso algo um prêmio para se ter orgulho e exibir como se fosse perfeito? Dos papéis tradicionais que são entregues a mulheres e homens, em relações heteronormativas, que dão margem para que tanta violência seja vista como amor?
Se por tanto tempo somos bombardeados com a ideia de que somente com a “alma-gêmea” seremos verdadeiramente felizes e que não ter um parceiro é sinônimo de sermos desagradáveis ou inferiores, cria-se uma verdadeira cultura de terrorismo. É muito comum a representação de pessoas solteiras/sozinhas como figuras tristes e distantes da imagem com a qual queremos nos identificar. Estabelecida a importância de um relacionamento para determinar seu valor pessoal e o que ele vai agregar à sua vida, estar e manter as aparências de um bom relacionamento se torna muito importante. É nisso que os papéis tradicionais se estabeleceram e progressivamente tem começado a ser subvertidos.
E da mesma forma como começou-se a questionar tantos espaços e funções pré-determinadas para as pessoas na sociedade durante os séculos, agora lança-se a questão de qual o lugar de um relacionamento que subtrai sua individualidade e te torna apenas uma peça, sujeita a todo tipo de agressão pela parte dominante. Se conseguimos repensar o espaço social que as pessoas ocupam, essa pauta, agora, chega na vida íntima e começa a desmontar os mecanismos que até então eram identificados como forma de amor.
Com tantas histórias de pessoas que sobreviveram a relacionamento, vistos como românticos que se transformaram em agressão e controle, coletivamente vamos reescrevendo as narrativas do que acreditamos ser aceitável ou não, mais do que no trato social, mas nas relações mais íntimas com outras pessoas e com nós mesmos, damos margem para que outras formas de afeto consigam nascer e entender a vulnerabilidade, que é inerente ao ser humano.