Tem gente que diz que sou do contra.
Que tô sempre com a bala na agulha pra disparar em alguém. Metaforicamente, é claro. Atirei em seus olhos: lembro dessa frase de um livro da Natalia Guinzburg. A literatura me assombra. Desconfio de tudo. Tenho uma certa adoração por teorias da conspiração e tô sempre pensando nelas. Fazendo conexões com coisas que são puro fruto da minha cabeça. De conspirações políticas aos mais variados e corriqueiros eventos do dia a dia, como trânsito versus gasolina, acordo imaginando tramas e vou dormir com caraminholas dignas da personagem Carrie da série Homeland.
E não estão de todo errados. Minha desconfiança não se dá só para tramas absurdas. Sempre que ouço ou leio uma expressão que, do dia pra noite, começa a circular por aí, acende em mim um alerta. Especialmente essas que querem sempre explicar tudo. E tudo, na maioria das vezes, ou não quer dizer nada ou não explica nada.
Com algum tempo livre para ler quase de tudo encontrei uma expressão nova, acho que mês passado ou retrasado: estava no linkedin um repost de uma conhecida de um texto que dizia “O novo normal etc. etc. etc.”. Um título bem otimista sobre como a sociedade está encontrando “novas” formas de lidar com a crise.
Será que eu li direito?
Pensei. Logo em seguida, vieram start ups, pessoas do ramo da tecnologia, futuristas, tarólogos, “livenistas” e até imaginei que ao ir no sacolão ia acabar dando de cara com alguma capa de revista com esse título. E não deu outra: Gisele Bündchen em um editorial de capa da Vogue e logo abaixo o famigerado título. Uma mulher linda, alta, magra, de olhos claros com uma máscara cirúrgica jogada para trás: o novo normal. Algo como um guia de como simplificar a vida em tempos de crise. Um verdadeiro glamour em pê e bê.
Daí pra frente, foi ladeira abaixo.
“É preciso que algo mude para que tudo fique absolutamente igual”. Lembrei dessa frase do Lampedusa. Fiquei matutando alguns dias sobre e resolvi ir em busca dos paladinos da nova normalidade: uma narrativa feita por homens, brancos, de classe alta e celebrados pelos seus discursos sempre otimistas e com olhares positivos sobre a atual crise. E indo mais a fundo fui entender as perspectivas de cada um. Se fosse no livro na Natalia, eu poderia dizer que “atiraram em meus olhos”. Mas tudo me pareceu mais um excesso de esforço para a continuidade de preservação do que um guia de sobrevivência. Por que não viver no caos, ao invés da normalidade? Pensei…
Normal pra quem?
E o que seria seu anormal?
Muitos normalistas diziam sobre os novos hábitos de se relacionar: viveríamos sob a máscara cirúrgica, agora confeccionadas por marcas glamourosas e com preços abusivos.
Outros arriscaram se embrenhar pela educação: a aceleração de algo que estava para acontecer. Com as salas de aula fechadas, estaríamos na nesse suposto futuro das aulas virtuais (ou remotas?)
E outros foram para o conceito romântico do lar: de como driblar a sanidade mental e o tédio para viver “bem” em suas casas.
Atiraram em meus olhos.
A história sempre deu vários exemplos de acidentes que alteram o curso da “normalidade” da sociedade. Acidentes naturais e guerras tem essa coisa de fazer com que a gente se mova um pouco no terreno seguro das nossas confortáveis certezas. Mas quanto tempo dura isso? Penso na Natalia Guinzburg: uma mulher escrevendo na Itália pós-guerra. O mundo em ruínas, com suas esperanças decapitadas e ela encontrando formas de se fazer uma literatura linda, mas nada “normal”.
Afinal, o que não é normal?
De novo, volto para a história. Olhando pra trás, sempre que saímos de uma crise e superados os medos e inseguranças, aparentemente começam a emergir nossas velhas e boas verdades. Ou seja, alguma coisa tem que mudar, desde que tudo permaneça como antes: quero continuar indo às compras no shopping, mas agora pela internet; quero continuar estudando, mas agora sentado no meu novo home office, confortável e seguro com minha internet wifi 5G. Olho e gozo do meu lar quentinho e seguro.
O “novo do normal” parece aquele chorinho de chope no fim da noite.
Sou sempre desconfiado de quem é otimista demais. É um perigo pensar que sempre tudo dá certo. Que no fim, a Disney vai reescrever nossas narrativas. Penso que quem é otimista demais, está sempre escorregando em terrenos bem arenosos. Um pântano, na verdade. Por isso gosto tanto de uma expressão da Rebecca Solnit: banalidade do bem. Achar que somos uma única sociedade onde ninguém solta a mão de ninguém, onde todos unidos venceremos, uma linda pintura com tigres, pássaros, rios e árvores. Assim, projetemos verdades universais para um coletivo que não existe.
Veja, no Brasil:
20% das pessoas habitam casas de apenas um único cômodo com outros habitantes. 50% das casas não têm acesso ao esgoto sanitário. 33 milhões de brasileiros não têm abastecimento de água confiável. A PNAD Contínua de TIC de 2018 mostrou que 1 em cada 4 pessoas no Brasil não tem acesso à internet.
Todas publicações, lives, stories, mediuns e qualquer coisa que o valha, diziam que o “novo normal” seria uma tal de economia da vida: não vamos viajar tanto, não vamos mais gastar tanto com roupas, menos consumistas, e, claro, vamos cozinhar (quando der) e até fazer faxina na casa por conta própria. Me lembra um pouco outra expressão: white people problems. Não?
E, claro, como sou muito desconfiado, não dá pra não perguntar:
“Novo normal” para quem?
É uma peça feita pra iludir. Uma trama mesmo que tenta, e talvez consiga, garantir que o status se mantenha, que a normalidade continue a reinar depois que tudo isso passar. Uma reportagem recente mostrou que a reabertura de uma filial da Hermés causou filas imensas na China. O mesmo com a Zara.
Nenhum novo normalista, desconfio, pensa em discutir como fazer para que o país se torne um lugar mais plural, generoso, inclusivo, menos racista. O que querem se não continuar em seus apartamentos aconchegantes, em seus silêncios noturnos (que é o que tem feito muito à noite), com a televisão ligada, comida quentinha e um belo edredom para esquentar essas noites de frio?
Desconfio que, talvez, seja isso mesmo
Enquanto tiverem internet para ver e fazer lives, enquanto a luz estiver acesa, água potável para tomar banho e matar a sede, geladeira estocada, cartão de crédito para pedir comida, enquanto tudo ficar como sempre foi, vai ser fácil viver esse “novo normal”.
Driblar o tédio, parece fácil.
Mas, desconfio, não é assim tão fácil e normal driblar a fome.
Por Vitor Richner